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Mulheres no comércio na Mesopotâmia

Por Anita Fattori, doutoranda em História Social, Universidade de São Paulo.


Certo dia, em um passeio remoto pela antiga Mesopotâmia, me deparo com um grupo de cartas que me deixa bastante intrigada. Começo esse texto convidando o leitor e a leitora a observar, por um breve momento, dois pequenos excertos de duas cartas de argila e se questionar: quem as enviou?


“Você me enviou cerca de 80 gramas de ouro para armazenar cevada, mas os seus representantes ainda não realizaram a tarefa. Por isso, nosso relatório sobre essa atividade não chegou a você.”

(RA 59, 159, 25, tradução livre)


“Sobre os tecidos que Aššur-malik levou para você anteriormente: por qual razão você não me enviou a prata equivalente aos tecidos?”

(VS 26, 42, tradução livre)


A riqueza documental escavada do território da Mesopotâmia é notável, com destaque para os tabletes de argila, como o da imagem acima, que podem chegar à soma de um milhão de unidades, de acordo com alguns especialistas. A escrita, formada por pequenas cunhas, era gravada nesses tabletes, daí seu nome: cuneiforme, escrita essa que foi usada por mais de três milênios. Os trechos evidenciados acima foram escritos em língua acadiana, numa de suas variantes mais antigas, chamada de dialeto paleoassírio. Esse termo, além de designar a cultura e o nome da língua especialmente desenvolvida na região de Assur, também corresponde à definição cronológica do período, que se estende aproximadamente dos anos de 2025 a 1809 AEC.


Assur, localizada na margem ocidental do Rio Tigre, no atual Iraque, destacava-se por ser uma cidade central em uma rede comercial de longa distância; numa das pontas dessa rede, sua relação mais extensa e regular se dava na Anatólia, com destaque para Kanesh, na atual Turquia. Mercadores, reunidos em uma lógica de firmas familiares e parcerias comerciais, partiam, organizados em caravanas de asnos, carregando tecido e estanho em direção à Anatólia. Lá, em troca, recebiam prata e ouro para que pudessem reinvestir em seus empreendimentos. As cartas, portanto, eram essenciais para a gerência dos negócios. Elas conectavam os mercadores – tanto os que estavam em constante deslocamento, quanto os que se estabeleciam por longos períodos em Kanesh – com suas famílias e parceiros que permaneciam em Assur.


Agora, munidos de mais informações sobre essas cartas, sugiro que você, leitor e leitora, refaça o trajeto até os documentos e volte à pergunta lançada no início de nosso percurso: quem era(m) o(s) remetente(s) dessas cartas? Se pudesse dar um palpite, eu diria que você pensou tratar-se de um tipo de mercador ou talvez a figura de um mascate. Caso eu esteja certa, gostaria de dizer que sua primeira impressão está equivocada. As cartas acima foram enviadas por uma mulher.


Entre os milhares de tabletes encontrados em Kanesh, um grupo de cartas se destaca. Cerca de algumas centenas delas apresentam em seu cabeçalho – como remetentes ou destinatários – nomes de mulheres. Essas mulheres, esposas, filhas ou irmãs de mercadores, integravam a unidade doméstica e produziam os tecidos levados para serem comercializados na Anatólia, recebendo em troca prata e ensejando, assim, o negócio familiar.


Quando pensamos em mulheres na Mesopotâmia, tendemos a imaginar figuras como a deusa Ishtar, tida popularmente como portadora de uma sexualidade perigosa; ou talvez fantasiemos os feitios orientalizantes de mulheres em um harém. Essas imagens são reflexo de uma produção historiográfica que, por muitos anos, esteve preocupada em evidenciar presenças femininas específicas – deusas e mulheres da elite – bem como fomentar discussões sobre os usos e condições dos corpos das mulheres, com referência, por exemplo, à maternidade e à prostituição.


Nesse sentido, esse grupo de cartas nos apresenta uma realidade cotidiana (de quase 4 mil anos atrás!) de mulheres comuns, muitas vezes ignoradas pelos historiadores, e nos permite ampliar o foco sobre esse universo social, mostrando que a esfera de atuação dessas mulheres não se restringia à produção de tecidos ou à manutenção da unidade doméstica. O contexto paleoassírio permite ver, ao observar um campo de atuação alargado dessas mulheres no seio de um contexto familiar e comercial do período, no mínimo, que tais fronteiras não existem da forma como suporíamos.


Como podemos ver nos dois primeiros trechos, essas cartas revelam uma pluralidade da atuação dessas mulheres. Elas foram enviadas por Lamassī a seu marido, um mercador de prestígio, Pushū-kēn. Na primeira carta, ela gerencia o recolhimento de cevada, principal grão da dieta mesopotâmica. Em seguida, para além da responsabilidade da produção têxtil, ela cobra pelo pagamento da prata da remessa de tecidos enviada anteriormente. Essa prata poderia ser reinvestida no comércio, como novo envio de tecidos e a realização de negócios com outros mercadores. Ainda dentro de seu campo de possibilidades, Lamassī poderia atuar, por exemplo, como credora de pequenas quantidades de prata. Não só os assuntos de negócio estavam sob encargo das mulheres, mas em caso de problemas jurídicos, chegaram a representar seus maridos frente às autoridades locais.


Nessas cartas, outros dois trechos jogam luz sobre aspectos particulares das relações sociais nesse contexto. Em um deles, Lamassī lembra de um papel social esperado para o marido afim de mobilizá-lo para voltar e assistir a entrega de sua filha ao sacerdócio. Em outro, revela uma possível preocupação com um status social ao questioná-lo sobre a reforma da casa:


“Mostre-se como um homem de honra, venha e cumpra suas obrigações. Coloque nossa filha no seio do deus Aššur”(RA 59, 159, 25, tradução livre)


“Desde que você partiu, Salim-Aḫum já reformou a casa duas vezes! Quando nós poderemos enfim fazer o mesmo?” (VS 26 42:30-37, tradução livre)


Ao trazer à tona informações sobre o cotidiano de mulheres, estamos nos propondo a revisitar modelos interpretativos que tendem a enclausurar essas mulheres em espaços que não correspondem à sua realidade social. Explorar o lugar desse grupo considerado subalterno em um contexto específico nos leva não apenas a uma reflexão sobre a construção das investigações sobre mulheres na pesquisa historiográfica em geral, mas, sobretudo, a abrir um espaço de diálogo com nossas concepções no presente.


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