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As facções do circo: rebeldes ou hooligans?

Updated: Jun 8, 2020

Por Julio Cesar Magalhães de Oliveira, Universidade de São Paulo.



O cônsul Júnio Basso em uma biga e quatro cavaleiros representando cada uma das quatro facções do circo. Mosaico do século IV. Roma, Palazzo Massimo alle Terme. Foto: Julio Cesar Magalhães de Oliveira.

As recentes manifestações de rua de torcedores de times de futebol rivais unidos em favor da democracia e os confrontos com militantes bolsonaristas e policiais que se seguiram em São Paulo e outras cidades brasileiras trouxeram de novo à tona o já tradicional reducionismo que tacha as torcidas organizadas como grupos homogêneos e por essência violentos, ignorando sua capacidade de mobilização e crítica. Para muitos comentadores, a única relação que o futebol teria com a política seria como mecanismo alienante: o futebol usado por políticos para desviar a atenção de problemas mais graves e mais importantes. Essa incompreensão também afeta o estudo de outros esportes no passado, como é o caso das competições do circo no Império Romano.


As corridas de carros puxados por cavalos que ocorriam nessas arenas suscitavam entre os torcedores um entusiasmo comparável ao futebol em nossos dias. Os melhores aurigas ou pilotos das bigas ou quadrigas (carros puxados por dois ou quatro cavalos) tornavam-se celebridades ainda maiores que os nossos craques, sendo comemorados em estátuas e monumentos. Como no futebol, no entanto, os torcedores das corridas se identificavam muito mais com as equipes do que com os competidores. As equipes de corrida romanas ou facções, como eram chamadas, se distinguiam pelas cores usadas pelos aurigas: Vermelho, Branco, Azul e Verde. Já no século I, Plínio, o Jovem, criticava o fanatismo que essas cores suscitavam: “é só por um pedaço de pano que eles torcem [...]. E se, durante uma corrida os aurigas trocassem de cor, os torcedores que antes os apoiavam mudariam de lado, esquecendo os nomes dos aurigas e dos cavalos que pouco tempo antes eles gritavam” (Cartas, 9, 6). Plínio, naturalmente, não podia entender o significado do que os torcedores hoje chegam a chamar de "manto sagrado".


Na Antiguidade Tardia, esse entusiasmo pelas cores não diminuiu, mas se concentrou em apenas duas delas: os Azuis e os Verdes. Em Roma, Constantinopla e em todo o Império Romano do Oriente, a maior parte da população parece ter se dividido entre essas duas lealdades. Essa polarização e os confrontos de rua que ela tantas vezes suscitou levaram os historiadores durante muito tempo a verem nos Azuis e Verdes partidos políticos ou religiosos disfarçados: os primeiros reunindo os aristocratas e os fiéis de confissão ortodoxa e os segundos, os pobres, camponeses, estrangeiros de confissão monofisita. Em seu livro Circus Factions: Blues and Greens at Rome and Byzantium, de 1976, Alan Cameron contribuiu para demolir essas associações simplistas que não têm nenhum fundamento nas fontes. No entanto, no próprio esforço de combater essas interpretações aberrantes, acabou por reduzir a violência dos torcedores organizados dos Azuis e Verdes a um vandalismo sem sentido e sem história: “O hooliganismo no teatro ou no circo sempre existiu no mundo romano – apenas piorou sob os Azuis e Verdes”.


Estudos mais recentes, como os de Charlotte Roueché, entretanto, oferecem uma visão mais convincente das origens, desenvolvimento e crescente importância das (um tanto impropriamente) chamadas “facções do circo” na Antiguidade Tardia. As facções do circo propriamente ditas eram, em sua origem, corporações profissionais responsáveis pela organização das corridas em Roma e, depois, em Constantinopla. A partir do governo do imperador Teodósio II (402-450), porém, a administração imperial passou a encorajar essas corporações a organizarem todo tipo de entretenimento público, incluindo os espetáculos teatrais, não apenas na capital mas em muitas outras cidades nas províncias. Nesse processo, as associações de jovens e outros grupos organizados que já participavam dos espetáculos públicos (como as associações de judeus, de ourives e de açougueiros de Afrodísias), foram englobadas, na condição de torcedores organizados, em uma das duas principais facções, os Verdes e os Azuis.


Com a formação dessas associações únicas que reuniam tanto competidores como torcedores organizados, as facções do Império Romano Tardio se tornaram um fenômeno diferente de tudo o que existia até então. Em cada cidade, os membros dessas novas associações passaram a contar com cerca de mil a duas mil pessoas como afiliados, sem falar no restante da população que podia torcer para uma ou outra facção. Além de sua importância numérica, o crescente envolvimento das torcidas organizadas no cerimonial imperial, como puxadores de cantos e aclamações, e a extensão de sua organização a várias cidades do Império encorajaram os Azuis e os Verdes a se comportarem com muito menos inibição do que qualquer de seus semelhantes no passado.


Não há dúvida de que as principais ocasiões de violência perpetrada pelas facções foram os confrontos entre torcidas durante ou após os espetáculos, envolvendo em especial a juventude. Como a rivalidade entre torcidas de futebol, o confronto com os rivais era uma forma de manter uma identificação com um grupo e de impor sua supremacia sobre o outro. Também é verdade que o apoio do imperador reinante a uma das facções encorajava os torcedores apoiados a atacar seus rivais. Mas essas não eram de modo algum as únicas atividades dos Azuis e Verdes, que podiam usar a força de sua organização para outros fins. Assim, Procópio escreveu sobre os Azuis da cidade de Tarso nos anos 540 que, enquanto outros habitantes sofriam calados os abusos cometidos por um alto funcionário imperial, os torcedores organizados dessa facção, confiantes em sua força e no apoio do imperador, provocaram o funcionário corrupto em praça pública com todo tipo de insulto e, quando o protesto foi brutalmente reprimido, os Azuis de Constantinopla, por sua vez, levantaram-se numa revolta em solidariedade (História Secreta, 29, 29-34).


Os Azuis e os Verdes podiam dar voz a muitas outras causas sociais. Em 555, em Constantinopla, as duas facções conduziram cantos de protesto no hipódromo endereçados ao próprio imperador pela escassez de pão (Malalas, XVIII, 121). Além disso, por mais devotadas que fossem à submissão do rival, as duas torcidas podiam se unir por uma causa comum. Em 532, a grande Revolta de Nika começou quando o prefeito de Constantinopla se recusou a perdoar dois torcedores, um dos Azuis e outro dos Verdes, que haviam sobrevivido à execução pública por enforcamento. Unidas no protesto, as duas facções também ganharam o apoio crescente do restante da população que passou a exprimir seus ressentimentos contra as autoridades. Após dias de protesto, com o incêndio do palácio do prefeito, de casas e edifícios públicos e uma tentativa de derrubar o imperador, o protesto foi reprimido pelo exército num massacre em que mais de 30.000 pessoas pereceram (Malalas, XVIII, 71; Crônica Pascal 620-629).


A complexidade da atuação dos Azuis e Verdes torna difícil aceitar a descrição proposta por Cameron para sua violência como vandalismo sem sentido, tanto mais quanto sua interpretação se funda numa visão não menos problemática sobre o próprio futebol. Para Cameron, o futebol, como as corridas romanas, só se tornaria fator político como distração e foco de patriotismo. Escrevendo em 1976, ele não hesitava em mobilizar o exemplo do regime militar brasileiro e sua associação com a Seleção campeã em 1970 para mostrar como o futebol ainda contribui para distrair o povo dos problemas sociais mais prementes. Se seu livro tivesse sido escrito em 1983, no auge da Democracia Corinthiana e dos protestos contra a ditadura militar, ele teria mais dificuldades de defender seu argumento.


Time do Corinthians entrando em campo com o lema da Democracia Corinthiana. Foto: Irmo Celso.

Mais recentemente, as torcidas organizadas dos fanáticos torcedores do al-Ahli e do Zamalek tiveram um papel decisivo durante as revoltas da Primavera Árabe no Egito, deixando sua rivalidade de lado e unindo forças para atacar a polícia do regime. Os protestos políticos no Chile no início deste ano também ganharam força após várias torcidas do país lançarem um manifesto pedindo a união em torno da causa comum contra o Governo de Sebastián Piñera. De fato, como Breiller Pires observou sobre os recentes protestos de São Paulo, a incursão das torcidas organizadas pelo palco da política "só surpreende aos que teimam [em afirmar] que ela não se mistura com futebol, incapazes de reconhecer a própria alienação”.


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