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A (in)visibilidade do trabalhador: da Antiguidade ao mundo moderno

Por Fábio Duarte Joly, Universidade Federal de Ouro Preto.




A pandemia da Covid-19, além de ser uma grave crise sanitária pela qual passa o mundo atualmente, trouxe à luz desigualdades sociais que já estavam presentes, mas que agora tornaram-se mais explícitas. Por exemplo, no Brasil, assim como alhures, tem-se aplicado o termo “invisíveis” àqueles trabalhadores informais sem qualquer registro nos dados oficiais do governo e que, portanto, seriam como se “inexistissem”, embora representem uma parcela significativa da população em idade ativa. Esse paradoxo demonstra a limitada cobertura de programas sociais e, mais grave, a percepção que o Estado e as elites têm de parte importante do corpo de cidadãos, colocada numa posição subalterna.


No mundo greco-romano, um paradoxo semelhante também chama a atenção. Volta e meia, na leitura das fontes antigas, deparamo-nos com a tensão provocada pela presença ubíqua dos escravos na cidade e sua simultânea invisibilidade, pois não se podiam perceber diferenças étnicas ou de vestimentas que singularizassem os setores servis. O filósofo Sêneca, no tratado sobre a clemência dirigido a Nero, no século I d.C., sinaliza esse ponto de maneira clara, quando afirma:

"É perigoso, acredita-me, mostrar à nação quão numerosos são os maus. Outrora, decidiu-se por um parecer do Senado que um sinal na roupa distinguiria os escravos dos homens livres. Em seguida ficou evidente quanto perigo nos ameaçaria se os nossos escravos começassem a nos enumerar". (1.24.1; trad. Ingeborg Braren, Petrópolis, 1990)

Esta passagem de Sêneca remete à observação semelhante do Velho Oligarca, no século V a.C., em que lamenta que:

"Quanto aos escravos e aos metecos, tamanha é a impunidade em Atenas que lá não é permitido castigá-los fisicamente e o escravo não te dá passagem. Vou explicar por que existe este costume local: se fosse legítimo o homem livre bater no escravo, no meteco ou no liberto, corria-se o risco permanente de surrar um Ateniense, acreditando tratar-se de um escravo; é que lá o povo não se veste melhor do que os escravos e metecos e sua aparência também em nada é melhor". (1.10; trad. Pedro Ribeiro Martins, Coimbra, 2013)

O historiador Kostas Vlassopoulos chama a atenção nesse documento para o que seria uma característica da democracia ateniense, qual seja, a existência de “espaços livres” (free spaces), como a ágora, que reuniam cidadãos, metecos, escravos e mulheres, proporcionando experiências e interações comuns, e moldando novas formas de identidade. O caráter metropolitano de Atenas, como centro de uma vasta rede de conexões no Mediterrâneo oriental, acabava por reforçar essa indeterminação de status, pois o grande número de artesãos, trabalhadores assalariados e lojistas impedia uma diferenciação entre cidadãos, escravos e metecos que trabalhavam nos mesmos ramos, fazendo confluir, na prática, identidades cidadãs com aquelas que não possuíam esse estatuto. Isso não significa que se abolissem as diferenças hierárquicas, mas que o espaço urbano tornava difícil a separação visual e, logo, o controle. Quadro semelhante pode ser pensado para Roma, apesar das escassas referências literárias.


Plutarco menciona a estória de um amigo de Caio Mário, Cássio Sabaco, que foi implicado por fraude quando Mário sofreu acusações de suborno na eleição para pretor em 115 a.C. (Plut. Mar. 5.3-4). Um escravo (oiketés) de Sabaco foi visto entre os votantes, no espaço anterior àquele de votação, na assembleia por centúrias. Sabaco explicou depois que tinha ficado com sede e chamou o escravo para lhe trazer água, e logo depois este teria se retirado do recinto. É certo que o escravo não estava na zona de votação, mas o episódio indica, como ressalta Henrik Mouritsen, que não havia uma supervisão da identidade de quem entrava naquele espaço, assim como provavelmente não teria depois na hora do voto (caso contrário, a lógica da estória perde sentido: se o escravo não pudesse de fato votar, não haveria acusação de fraude).


Cícero, por sua vez, reclama que, nas contiones – reuniões públicas, de caráter informal, onde se debatiam questões que depois passariam pelas assembleias (comitia) –, não apenas homens livres, mas também escravos faziam-se presentes (Mil. 76; Dom. 54). A princípio não haveria razão para que escravos estivessem ausentes nas contiones, pois não existia um controle de identidade para separar os não-cidadãos de tomarem parte. Contudo, caso algum aristocrata se utilizasse desse recurso de trazer consigo grupos de escravos para aumentar a audiência, tornava-se objeto de censura por seus pares. A presença de escravos nas contiones – e no próprio Fórum, embora as fontes literárias os tornem invisíveis, assim como mulheres, crianças e estrangeiros – ganha até mais relevância se levarmos em consideração que esse espaço informal de discussão política não era ausente de importância face aos comitia, quando então se tinha poder legal de decisão. A decisão formal de todo projeto apresentado nas contiones tinha lugar nas assembleias legislativas e as evidências apontam para o fato de que as assembleias em geral concordavam com o que fora debatido nas contiones. Desse modo, como destaca Martin Jehne, o papel da plebs contionalis, que agregava a população de Roma que circulava frequente e cotidianamente no Fórum, incluindo escravos, ganha um peso político não menor, ainda que não visível e registrado, que o conjunto de cidadãos aptos a participarem das assembleias.


Já o texto senequiano alude a outra forma de ansiedade da elite frente à presença de escravos em Roma. Na ausência, no Principado, das assembleias que reforçavam a distinção entre cidadão e não-cidadão, o foco recai agora na indiferenciação visual de livres e escravos nos quadros de um debate sobre controle social. O debate senatorial sobre a população servil de Roma revela interesses conflitantes da elite. Por um lado, há um impulso para promover a ordem social de uma maneira sem ambiguidades e claramente visível. Por outro, o medo de um levante servil desencoraja a imposição de uma identidade escrava coletiva. Todavia, ao não fazer tal imposição, um desdobramento é negar a possibilidade de uma identidade individual e um senso de pertencimento a um grupo social no espaço público. A indeterminação e o embaçamento de status entre livres e escravos facilitam a fragmentação dos grupos servis e isolamento de um escravo frente a outro, tornado a casa o único local de referência para uma identidade coletiva, porém mais submetida ao controle senhorial.


Respeitadas as diferenças entre as sociedades escravistas antigas e o nosso mundo contemporâneo, não seria um exagero ponderar que a representação de uma pretensa invisibilidade de classe trabalhadora, seja escrava ou livre, apenas atende aos interesses daqueles que preferem a manutenção das disparidades e segregação sociais, como se nota hoje em nosso país. Mesmo que tenham uma cidadania negada (caso dos escravos na Antiguidade) ou cerceada pela falta de acesso a direitos básicos, como vemos hoje no Brasil, esses indivíduos têm um papel político e econômico que deve ser sempre lembrado.


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